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16 agosto 2018

Fidel entre duas infâncias


Eu ouvi sobre Fidel, pela primeira vez na minha infância, bem antes de primeiro de janeiro de 1959. Naquela época, seu nome foi dito em voz baixa e às vezes percebida nos murmúrios dos idosos. Certa noite, ouvi-o mencionar no rádio, também em baixo volume, na casa de parentes que tinham um aparelho de ondas curtas. Ali ouvimos uma estação clandestina transmitindo das montanhas da Sierra Maestra, onde o nome proibido e seus amigos brigavam com o exército.

Então a primeira coisa que eu aprendi de Fidel é que às vezes tinha que ser discreto: ele não podia dizer o seu nome, não podia dizer que ouvimos essa estação, como não poderia dizer que a padaria próxima recolhia fundos para o 26 de Julho. Pela mesma razão, também era um segredo que, dos meus soldados de brinquedo, meus afins eram os rebeldes e que seus inimigos eram os mesmos inimigos dos rebeldes da realidade.

Apenas dois anos depois da Revolução, Fidel, para mim, foi que o homem jovem, enérgico e barbudo que a poucos metros acima da minha cabeça, na praia de Varadero, despedia-se de um exército de ensino no início do amanhecer para campos e montanhas de Cuba, armados com lanternas e livros de alfabetização.

Esse foi o primeiro discurso ao vivo que ouvi e gostei, porque muitas vezes desde então voltei a estar próximo de onde Fidel parou para fazer história. Mesmo quando meu serviço militar, se alguma das minhas poucas autorizações coincidia com um evento público, lá estava eu, o mais próximo possível da tribuna. Eu posso dizer que eu estava no estádio onde aquele jovem colombiano, armado com seu acordeão, nos fez conhecer Cuba sim, ianques não. E desta vez os passos da universidade, quando alguém omitiu a palavra Deus em uma carta de José Antonio Echeverría, e Fidel ficou furioso e fez o discurso memorável em que ele chamou os de visão estreita como "mancos mentais".

Confesso que quando Fidel falou sobre os "elvispreslianos" me senti em conflito, pois gostava das músicas e violão de Elvis Presley desde que eu era pequeno. Eu achava que as palavras dele, mais do que música, se referiam aos jovens que passavam o tempo na irrelevância, alheios à urgência do país. Era um ponto desconfortável, mas nunca me colocou em dúvida, porque minhas hierarquias sentimentais estavam sempre maduras.

A primeira vez que fiquei um pouco mais perto de Fidel, foi através de terceiros. Quero dizer, quando alguém próximo teve um encontro direto com ele e eu pude ouvi-lo dizer. Isso aconteceu na noite mais difícil da Crise de Outubro, quando o chefe da Revolução se reuniu com alguns líderes, entre eles os responsáveis pelo semanário Mella, onde trabalhei. Essa reunião foi para informar sobre a possibilidade de que, ao amanhecer, Cuba sofresse dois impactos nucleares. A idéia desse ataque - que eu li mais tarde foi de Robert Kennedy - foi dividir nossa longa ilha em três partes, para facilitar um pouso posterior. Conselho que foi dado na reunião foi que, quando o ataque ocorresse, procuráramos olhar para o oeste, para não ser cegadod pelo brilho e para resistir à invasão do terço de país que sobraria.

Eu tinha 15 anos. Depois de ouvir que o mundo terminaria de manhã, quando meus companheiros subiram e eu estava sozinho, refugiei-me na lua. Olhando para ela, algo me disse que isso era demais para ser verdade. Talvez tenha me ajudado a pensar assim, uma conga maluca descendo em Belascoain, a dois quarteirões de onde eu estava com meu fuzil. Mas a verdade é que enquanto alguns estavam pensando sobre o destino do mundo e outros rumores de que éramos socialistas, Fidel estava acordado, organizando a resistência após a hecatombe nuclear. Foi o Fidel que naquele lugar chamado Cinco Palmas, após o pouso forçado do iate e da derrota de Alegria de Pio, disse aos poucos remanescentes que agora sim fariam a revolução. O mesmo homem que alguns de seus colegas achavam que tinha enlouquecido. É por isso que acredito que uma das coisas que fizeram Fidel ser Fidel foi sua extraordinária capacidade de previsão e sua certeza de que sempre haverá um futuro para continuar lutando.

E talvez porque eu estava longe de ser assim – me falta a grandeza – , porque para mim a realidade pode sobrecarregar e até mesmo para persuadir, devo dizer que este curso louco, que inconformista inveterado, esse rebelde com uma causa me recrutou desde a minha infância.

Há outros ângulos Fidel, menos público, que continuam a ser muito sedutores: como quando ele confessa que o que mais gostaria de estar de pé num canto, ou quando ele aceita o desafio de quem faz o melhor paella e um avental, ou quando ele diz que gostaria de ser poeta.

Certamente há uma multidão de Fidel habitando o mesmo esqueleto e conformando-se ao homem que teve a energia e a sorte para levar a cabo uma vida exigente, dificilmente comparável, tão autêntica que arrastou seus contemporâneos com ele e que ainda hoje convoca e acrescenta pensamentos. É por isso que não duvido que haja Fidel por muito tempo.

A menos que surja outro período sombrio em que outras pessoas injustas possam devolvê-lo a outra montanha, a outro silêncio como quando ouvi seu nome ali, na minha infância. Se esse véu cair, não duvido que Fidel romperá novamente o silêncio imposto e que outro dia, com outro nome luminoso como aquele de janeiro, voltará a obter a vitória.

Por Sílvio Rodriguez, em seu blog Segunda Cita

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