06 janeiro 2018

"A lenda não morreu"


Minha geração nasceu nos primeiros anos, após ter triunfado a Revolução de 1959 e uma porção dela, nos meses anteriores. Quando os barbudos tomaram Santiago, e depois chegaram a Havana em uma caravana, a República Popular da China tinha só uma década de fundada e os estados socialistas da Europa do Leste não ultrapassavam os 15 anos de surgidos. A Revolução Soviética e seu Estado multinacional, em cujas cidades e nações muitos de nós estudamos, era a más antiga: 40 anos de resistência contra o capitalismo internacional e o fascismo. Porém, adolescentes afinal, nos anos 70 achamos que nossos pais e suas revoluções eram velhos (algumas revoluções eram, certamente, mas não por razões do calendário).

Nestes dias, revi minhas fotos dos anos 80, quando recém graduados da Universidade brandíamos com ímpeto a espada juvenil, convencidos de que estávamos destinados a instaurar de vez e para sempre a verdade, a razão e a justiça revolucionárias, e pensei: ‘nossos pais, naquele momento, eram mais jovens que nós hoje’. Porém, coitados aqueles que não tentaram transformar o mundo em seus primeiros passos pela vida, inclusive com justas doses de autosuficiência, esses nunca foram jovens. Os que no decurso dos anos e as décadas não cessaram na tentativa de transformá-lo, contudo, não podem ser considerados velhos.

Pouco a pouco descobrimos que a vanguarda revolucionária é supratemporal, embora seja, maiormente, de seu tempo; conexa-se sob a terra (onde crescem e se afundam as raízes) com as vanguardas anteriores e é integrada por homens e mulheres de diversas idades. Caso existir alguma dúvida, Gómez e Martí, Baliño e Mella, poderiam dissipar essa dúvida; mas também, a ponte histórica que une Martí e Fidel. Caso não for assim, como explicar a necessidade que sentem os revolucionários latino-americanos de invocar o machado, o sabre ou o facão de seus antecessores? Eles insistem nos chamados martianos, sandinistas, zapatistas, bolivarianos, fidelistas. Os heróis do passado alentam os novos, debatem com eles como jovens apaixonados que são. Não podem ser empalhados, são camaradas de luta. Ainda lembro com emoção o instante mágico onde um milhão de jovens de todas as idades tributou ao Comandante-em-chefe da segunda metade do século 20 a mais alucinante despedida que um herói possa receber: ‘Eu sou Fidel’, clamava seu povo com o punho erguido, que significa dizer, não deixaremos morrer você». Fidel disse o mesmo a José Martí, no ano de seu centenário, mas as épocas são diferentes: o Apóstolo foi abandonado, mas Fidel não.

E preciso aprender a identificar um jovem. Não se trata, é certo, do muito suave que seja sua pele ou negro o cabelo, tampouco é preciso perguntar a idade. Esses são dados confusos. Os moncadistas eram, aparentemente, como seus contemporâneos, mas enquanto eles atacavam o quartel Moncada muitos outros dançavam no carnaval. Há que desconfiar daqueles que teimam em acatar os consensos que a moda, as transnacionais da mídia ou o esgotamento espalham. Por outra parte, os jovens pensam em una frase que admite manipulações diversas e é um truco muito usado pelos adultos para justificar sua própria deserção. Os consensos são construídos — essa é a tarefa de revolucionários — e na medida em que respondam ou não aos interesses reais das maiorias, dos humildes, estarão mais perto da verdade. A vanguarda dos jovens revolucionários é intergeracional. Não existe um Partido dos menores de idade (estes têm interesses tão diversos como o resto da sociedade); existe, em troca, o Partido dos jovens de qualquer idade, que ergue o ideal comunista.

É certo que cada geração contribui com um modo de pensamento diferente e que esse outro olhar descobre aspectos que se obviam, sensibilidades não percebidas anteriormente; mas o eixo moral de um revolucionário, não importa o século que viver, é a justiça, a possível e a que aparenta não sê-lo. Para isso tentará que as desigualdades de hoje — as inevitáveis, as que são ou parecem justas — sejam temporais. Não se conformará. Esse é o horizonte, a terra difusa que se vislumbra na névoa, para a qual é preciso remar: toda a justiça. Ninguém remará caso desaparecer, caso não ser invocada. E é imprescindível o revezamento dos remadores, que todos nos sumamos como protagonistas deste esforço grande.

O fato que motiva estas reflexões é simples: daqui a pouco começaremos a viver o 60º ano da Revolução, e nós, seus primeiros filhos, no decurso deste e dos seguintes anos, completaremos sua idade. A Revolução Cubana já tem mais anos que os que tinham os estados socialistas da Europa quando sumiram. O Estado multinacional soviético não existe mais. Fomos o referente de outras revoluções latino-americanas mais recentes, sem que ninguém tentasse duplicar nossos modos e maneiras. Muito perto destas costas, à caça, com os canhões apontando, ficam os depredadores do grande Capital. Alguns amigos têm razões para se render. Dizem compreensivos: ‘não podemos exigir ao povo cubano mais sacrifícios’. Pergunto-me se a entrega de nossas conquistas é um sacrifício menor, se o capitalismo dependente que espera nas águas estancadas do barranco ao que nos empurram, não acrescentaria o sofrimento da maioria e os deixaria sem a possibilidade de lutar por um futuro melhor. Todas as insuficiências que os revolucionários descobrem, todas as insatisfações podem ser solucionadas se (e só se) somos capazes de conservar a Revolução.

Ao passo que avança o 60º ano — os adolescentes de hoje nos qualificam de muito velhos, é natural — comemoraremos outras efemérides: o 150ª aniversário, por exemplo, do começo da Guerra de Independência. Alguma vez Fidel expressou que em Cuba só houve uma Revolução, a que começou Carlos Manuel de Céspedes em La Demajagua, ele arguiu, há meio século, quando éramos muito jovens e não sabíamos que nossos pais também foram. Naquela oportunidade, Fidel alegou: "nós devemos saber, como revolucionários, que quando dizemos que nosso dever é defender esta terra, defender esta Pátria, defender esta Revolução, temos que pensar que não defendemos a obra de dez anos, nós temos que pensar que não defendemos a Revolução de uma geração: Temos que pensar que estamos defendendo a obra de cem anos!". Isso explica, também, por que a Revolução Cubana de 1959 não fracassou quando as outras caíram. Explica o enlace das gerações em uma guerra que para ser anticolonialista, no século 19, e antiimperialista no século 20, teve que ser anticapitalista.

Sou quatro meses mais velho que a Revolução que me formou, e tão jovem como ela. Uma Revolução que se renova, passe a redundância, que se refunda. Daqui a pouco do começo do novo ano — um final e um começo que nos outorgamos para meditar — não tenho melhor arenga patriótica que a do jovem José Martí: "A lenda não morreu. Indômitos e fortes, seus filhos se preparam para repetir sem medo, para acabar esta vez sem mácula, as façanhas daqueles homens corajosos e magníficos que se alimentaram com raízes; que do cinto de seus inimigos apanhavam as armas do combate; que com ramos de árvores começaram uma campanha que durou dez anos; que domavam na manhã os cavalos com os quais combatiam à tarde!".

por Enrique Ubieta Gómez, no Granma

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